“O Paradoxo entre Ser Mulher e Ser Policial: Estado da Arte e Reflexões” é o título da dissertação da capitã Gisleia Aparecida Ferreira, que conclui o mestrado em Desenvolvimento Comunitário, na Unicentro/Texto de Edilson Kernicki, com entrevista de Juarez Oliveira

A subcomandante da 8ª Cia Independente da Polícia Militar (8ª CIPM), a capitã Gisleia Aparecida Ferreira, que conclui o mestrado em Desenvolvimento Comunitário pela Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (Unicentro), defende a dissertação intitulada “O Paradoxo entre Ser Mulher e Ser Policial: Estado da Arte e Reflexões”. O trabalho, de 125 páginas, resgata a trajetória da inserção das mulheres no mercado de trabalho e, sobretudo, na Polícia Militar do Paraná (PM/PR) e suas diferentes atuações dentro da Corporação, tanto no serviço administrativo quanto no operacional e busca refletir sobre a valorização do trabalho da mulher no meio policial militar.
Ao ser entrevista pela nossa reportagem, a capitã destacou que o mestrado em Desenvolvimento Comunitário da Unicentro aborda muitos temas de interesse local e que os professores auxiliam no desenvolvimento da pesquisa até chegar à banca de defesa da dissertação. Gisleia tem como orientador o professor Erivelton de Fontana Laat, da Linha de Pesquisa que aborda Saúde do Trabalhador, Ergonomia e Qualidade de Vida no Trabalho e que pesquisa os temas Trabalho, Sociedade e Interdisciplinaridade.
Gisleia dedicou dois anos de pesquisa para a escrita da dissertação e foi até o Museu da Polícia Militar do Paraná para coletar dados históricos. “Dentro desse estudo meu, que aborda o paradoxo de ser mulher e ser policial, primeiro, precisava falar sobre ‘ser mulher’. A mulher está conquistando, aos poucos, seu lugar, seu espaço, porque, durante muitos anos, foi relegada aos afazeres domésticos. Com o tempo, foi visto que as mulheres tiveram que ir para o mercado de trabalho, às vezes, até forçadas, como na época das Grandes Guerras [I e II Guerras Mundiais], quando os homens iam para a guerra e alguém tinha que sustentar a casa, alguém tinha que fazer movimentar a economia do País”, descreve.
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Nesse meio tempo em que a mulher se inseriu no mercado de trabalho, algumas já passaram a ingressar na carreira militar, inicialmente, como enfermeiras e auxiliares nos campos de batalha. No front, ou seja, nas trincheiras, pegando em armas, as mulheres tiveram alguma participação somente a partir da II Guerra Mundial, encerrada em 1945. A partir disso se deu o pontapé inicial na briga para que as mulheres tivessem espaço nos cursos de formação: primeiro, na Marinha; depois, no Exército e, em seguida, nas Polícias Militares. Entre as décadas de 1960 e 1970 que as mulheres passaram a ser inseridas no meio militar.
Em 1955, o Estado de São Paulo foi o primeiro a admitir mulheres na PM. Porém, de início, a ideia era que as mulheres ficassem restritas ao meio administrativo na polícia. De pouco em pouco, os avanços na inserção de mulheres nas Polícias Militares foram respaldados por mudanças na legislação. “Hoje, graças a Deus, na grande maioria, a mulher já chegou aonde quer, tanto que temos mulheres em altas patentes no Exército, na Aeronáutica, na Marinha e nas Polícias Militares também, inclusive comandantes-gerais”, ressalta.
Gisleia menciona que, recentemente, esteve no Rio de Janeiro na receber uma premiação e que ficou muito contente ao notar que ali havia cinco mulheres que alcançaram o posto de coronel. Conforme a capitã, na PMPR, as mulheres que fazem o curso de Oficial, que se formam tenentes, são as que devem subir na hierarquia até o posto de coronel. Do posto de capitã, que Gisleia ocupa, até se tornar coronel, são necessárias a promoção a major e, depois, a tenente-coronel. Com a lei que estipulou, a partir de 2005, um equilíbrio na oferta de vagas para homens e mulheres na PMPR, a subcomandante da 8ª Cia estima que, dentro de dez a 15 anos haja muito mais mulheres no Alto Comando da Corporação.
A mestranda observa que a área que ela pesquisou ainda possui bibliografia escassa, com poucos estudos científicos publicados e o que já existia era material produzido em dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre a atuação de policiais femininas na Polícia Militar do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Bahia. Algumas dessas pesquisas, segundo ela, fazem a abordagem da história da Polícia Feminina em geral, enquanto outras enfatizam a própria trajetória como policiais. “Foi aí que eu me identifiquei. A mulher, na Polícia Militar, inicialmente, tem que deixar algumas coisas de lado. Se você quer realmente aquilo como profissão e carreira, tem que fazer cursos, viajar bastante. Então, nem sempre consegue dar toda a atenção para a família. Você tem que ter algum foco na tua vida: ou a carreira ou a família. Tanto que, na minha turma de soldados, fomos apenas três que conseguimos estudar e nos tornarmos oficiais. A grande maioria ficou como soldado, cabo, no máximo, porque decidiu optar pela família. Dentro dessas graduações, temos que fazer muitos cursos, muita viagem, muito estudo”, diz. O advento do Ensino a Distância (EaD), segundo Gisleia, ameniza essa situação e permite fazer esses cursos e permanecer mais tempo perto da família.
A capitã pontua que, gradativamente, as mulheres que atuam na Polícia Militar deixaram de ser restritas à atuação administrativa e cada vez mais fazem parte do operacional. De acordo com a subcomandante da 8ª Cia, um dos cursos mais difíceis é o de Operações Especiais (COESP). Gisleia explica que é o mesmo curso retratado no filme Tropa de Elite. “São 40 dias que os policiais vão e todo dia tem um ou dois pedindo para ir embora. Nós tivemos, no penúltimo curso aqui, uma policial, que hoje é capitã, a capitã Bruna, de Maringá”, afirma. Os pré-testes para esse curso já exigem bastante do policial, conforme ela.
Gisleia comenta que o curso habilitou a capitã Bruna a atuar em Grupos Especiais. “Em Curitiba, temos muitas mulheres já dentro dos Batalhões Especiais, que não aceitavam mulheres até um tempo atrás. Não tinha mulher no BOPE, no Choque, na RONE”, ressalta. A capitã destaca, também, a atuação das mulheres em Esquadrões Antibomba, área em que se destacam por serem mais detalhistas. “A Polícia Militar hoje tem mais de 12 mil pessoas – homens e mulheres – e cada um tem seu espaço e não pode ser limitado por causa de gênero”, enfatiza.
De acordo com a subcomandante da 8ª Cia, a Polícia Militar de cada Estado brasileiro possui legislação e regulamentação próprias, inclusive no que diz respeito à reserva de vagas para mulheres, o que está longe de ser unânime, pois se há Estados que destinam até 50% das vagas para mulheres, há outros em que essa faixa não excede os 20% e pode, até mesmo, se limitar a 10%. “Acho que existe uma necessidade de uma coisa uniforme de não limitação. Hoje, na PRF [Polícia Rodoviária Federal] não tem limitação, na Polícia Civil não tem limitação, na Polícia Federal também não. Quem passou entrou. Acho que não tem que haver essa limitação. ‘Ah, mas vamos ter apenas mulheres na PM?’. Sim, é para quem estudar mais, quem tiver mais capacidade. Não é só fazer um concurso e já vai trabalhar na polícia. Tem um curso de formação e é nesse curso que se vai ver se a pessoa tem capacidade ou não”, analisa.
Para Gisleia, uma das coisas que precisam ser revistas, não só no Paraná, mas em todo o Brasil, é essa limitação, que fere a igualdade de gênero e abre precedentes para a suspensão de concursos. “Temos a doutrina, a filosofia, de Policiamento Comunitário e não existe mais aquele negócio de truculência. Comparar a Polícia Militar só como masculina seria apenas uma necessidade de mostrar força e não é mais isso. Hoje, a PM é uma conciliadora, uma entidade que está ali para auxiliar as pessoas, para informar, mostrar segurança e fazer orientações. A segurança pública está num outro patamar, não é mais só o que era visto antes: apartar briga, prender um e outro, ter que entrar no braço. Tenho quase 30 anos de polícia e umas duas ou três vezes que tive que fazer força, mas em nenhuma dessas ocorrências eu apanhei. É disso que eles têm medo: de que uma policial baixinha ou magrinha possa apanhar. Não vai. Para isso, temos treinamento, nunca estaremos sozinhas, sempre terá alguém junto e, em qualquer situação que se veja que pode haver problemas pelo número de pessoas, é chamado apoio. Ninguém vai se expor [a risco] dessa maneira, seja homem ou mulher”, comenta.
A subcomandante da 8ª Cia explica que uma mudança recente na legislação alterou a forma de ingresso na Polícia Militar do Paraná, que vai passar a exigir curso superior. Até o ano passado, bastava o ensino médio completo para entrar como soldado e, para oficial, era necessário o ensino médio e passar no vestibular da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e, assim, entravam jovens de 17, 18, 19 anos na PM/PR. A nova legislação exige ensino superior completo: de qualquer área para soldado e graduação em Direito para oficial.
O início da trajetória: A capitã Gisleia, que completa 28 anos de serviço na Polícia Militar do Paraná em 2024, ingressou na PM em 1996, 18 anos depois que as cinco primeiras aspirantes foram apresentadas no Quartel de Polícia Feminina da PMPR, em 1978. A incorporação das policiais femininas à PMPR ocorreu a partir de 1977, quando Gisleia ainda era uma menina de apenas três anos. A subcomandante da 8ª CIPM fez parte da última Escola de Soldados da PMPR composta, exclusivamente, por mulheres.
Até 1996, Gisleia era secretária no Iraty Sport Club. Ela relata que, desde criança, sempre gostou muito de futebol e que era levada pelo pai ao estádio Coronel Emílio Gomes para assistir aos jogos, até que, em 1993, surgiu a oportunidade de trabalhar no clube, atuando no cadastro de jogadores, pagamento, reservas de hotéis para o elenco nas viagens, entre outras funções. Em 1996, ela soube do concurso público para a Polícia Feminina em Guarapuava a partir de uma notícia veiculada no então “Jornal Estadual”, da TV Paranaense (atual RPC).
“Nunca tinha visto uma policial feminina na vida. Eu tinha 19 anos e nunca tinha visto, que encontrasse pessoalmente”, relata a capitã. No dia seguinte, ela ligou para a Polícia Militar em Guarapuava para se informar sobre o concurso e a primeira pergunta foi sobre o salário. “Lembro que ganhava o dobro do que eu ganhava ali [no Iraty]. Para mim, foi uma grande coisa, porque eu tinha uma filha. Eu era solteira e tinha uma filha de quatro anos e ajudava minha família também, então precisava de melhores condições”, relembra. Em seguida, ela fez a inscrição e logo já começou a estudar o conteúdo programático e a treinar para o teste físico.
Gisleia entrou para um grupo de 40 mulheres entre 800 candidatas da seleção para a última turma exclusivamente feminina do Curso de Formação de Soldados, em Guarapuava. Segundo ela, até então, o mais próximo que ela tinha chegado do militarismo eram os quatro primos bombeiros dela e não conhecia nenhuma mulher que fosse PM. “Foi um desafio para eles, pois nunca tinha havido policial feminina em Guarapuava também. Uma cultura diferente, as pessoas ficavam olhando meio que de lado para nós e fomos conquistando nosso espaço. Hoje, ainda tem muitas policiais femininas na cidade e, da nossa turma, já tem bastante aposentadas. Conquistamos nosso espaço e, hoje, trabalhamos na área operacional, na área administrativa, em qualquer lugar, estamos trabalhando junto”, destaca.
A dissertação da capitã resgata a história da atuação feminina na PMPR, na qual ela própria se insere. “Trazemos a história da Polícia Feminina inteira, pois todos os desafios que eu enfrentei, elas também foram enfrentando, porque quando entrou a primeira turma de Polícia Feminina, a Polícia Militar já tinha mais de 120 anos aqui no Paraná. Então, foram 120 anos sem mulheres e, de repente, entram mulheres em Curitiba, na primeira turma. Desde então, foi se expandindo, de Curitiba, foi para Londrina, Maringá, Ponta Grossa. Ali em Guarapuava foi a sétima turma de policiais femininas que teve”, conta.
Essa “conquista de espaço” à qual Gisleia se refere está relacionada à falta de equiparação que havia entre homens e mulheres na Polícia Militar, pois elas eram vistas como mais frágeis que os homens, que teriam medo de determinadas situações ou que suas condições poderiam colocar em risco a integridade das equipes. “Mas o treinamento que foi feito para nós, desde a primeira turma de policiais femininas, é o mesmo treinamento que é feito para os masculinos”, diz. Conforme a mestranda, não há razão para subestimar a capacidade feminina para esse trabalho, com treinamentos diferentes, tanto que muitas delas são faixa preta em artes marciais. Os treinamentos incluem defesa pessoal, tiro e estudo da legislação.
“Um diferencial daquela turma nossa – e que continua sendo agora – é que as mulheres tinham um grau de instrução bem maior. Das 40, umas 30 já tinham curso superior: tínhamos enfermeiras, administradoras, bacharéis em Direito. Foi um diferencial para já conseguirmos levar nossas ideias e sermos inseridas naquele campo que era predominantemente masculino. Para aceitarem uma mulher, nesse meio masculino, sempre foi olhado meio que ‘de canto’, até hoje é assim. À medida em que fomos alcançando uma graduação maior, se torna mais difícil ainda”, ressalta a capitã.
Em 1999, Gisleia se submeteu ao concurso interno para Cabos, com apenas duas vagas femininas, enquanto havia mais de 300 para homens. Entre todos os mais de 300 candidatos, a policial conquistou o 2º lugar geral, apenas porque havia um critério de desempate sobre determinada matéria da prova, pois ela obteve a mesma pontuação do candidato que ficou em 1º.
Dois anos depois, ela fez o Curso de Sargentos, com 60 vagas – 44 para homens. Em 2005, uma nova lei definiu que qualquer curso deveria ter uma reserva de vagas de até 50% para ambos os sexos, o que equilibrou mais a presença de homens e mulheres neles. Gisleia cita que a última formatura de soldados, com mais de 2 mil novos soldados, incluiu 460 mulheres.
Em 2010, ela fez o curso de Oficial do Quadro Especial da PMPR, que tinha 60 vagas e até 30 poderiam ser preenchidas por mulheres, mas apenas sete, com ela, foram aprovadas.
Neste ano, Gisleia se prepara para um novo passo, pois decidiu ingressar na carreira política, lançando-se como pré-candidata a vereadora. “Entendi-me capacitada nessa nova etapa da minha vida. Estou fazendo 30 anos de Polícia, já estou em fase de aposentadoria. Poderia ficar até 35 anos, mas já optei por encerrar aos 30. Sempre tive contatos políticos, na minha vida inteira, desde antes da Polícia. Nossa visão de sociedade foi construída com muito estudo, desde a escolinha do DER, onde eu estudei desde os seis, sete anos de idade, até a formação na faculdade, depois cursei Direito na UEPG, fiz várias pós-graduações e agora, o mestrado na Unicentro. Vamos construindo a nossa cabeça, conhecendo toda a nossa área e resolvei que, neste ano, sou pré-candidata a vereadora. É um novo desafio”, conclui.
Antes do Mestrado em Desenvolvimento Comunitário pela Unicentro, Gisleia se graduou em Direito pela UEPG, em 2006; fez especialização em Direito Administrativo Disciplinar (Universidade Tuiuti) e em Gestão Pública, com ênfase em Direitos Humanos e Cidadania (UEPG). Possui experiência nas áreas de Direito Administrativo, Disciplinar, Direitos Humanos, Direito Penal e Processual Penal Militar e estuda gênero nas instituições militares.