TJPR considera inconstitucional artigo do Código Estadual da Mulher Paranaense que trata do direito da gestante em optar pela realização de cesariana na modalidade eletiva, ou seja, por escolha. Confira a entrevista com o Dr. Luiz Ângelo Fornazari/Texto de Edilson Kernicki, com reportagem de Rodrigo Zub
Uma gestante que compareceu à Santa Casa de Irati em 18 de agosto chegou a acionar a Polícia Militar sob a alegação de que o médico recusou atendimento. A mulher grávida relatou que tinha um sangramento e foi até o hospital solicitar a realização de uma cesariana. De acordo com nota de esclarecimento emitida pela direção da Santa Casa de Irati, não havia indicação clínica e a paciente foi orientada quanto aos retornos para o acompanhamento até o nascimento do bebê.
A mesma nota aponta que a recusa em atender o pedido da gestante tem base na revogação do artigo 111, inciso VII, parágrafos 1º a 4º da Lei Estadual 21.926/2024 – o Código Estadual da Mulher Paranaense (CEMP), outrora conhecida como Lei do Parto Adequado ou da Cesárea a Pedido (antiga Lei 20.127/2020). O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR) revogou em 17 de junho de 2024 o artigo da Lei aprovada pela Assembleia Legislativa (ALEP) em 11 de março, que versa sobre o direito de a gestante optar pela realização de cesariana na modalidade eletiva, ou seja, por escolha dela própria. A Procuradoria-Geral de Justiça do Paraná propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o artigo. O CEMP consolida 97 Leis Estaduais garantidoras de direitos das mulheres aprovados de 1990 a 2023.
Além disso, a Diretoria de Atenção e Vigilância em Saúde (DAV), da Secretaria de Estado da Saúde (SESA-PR) orienta aos profissionais e serviços de saúde da Linha de Cuidado Materno-Infantil (LCMI) pela inaplicabilidade do direito de a gestante definir pela realização da cesariana na modalidade eletiva. Conforme a SESA, a avaliação clínica e a indicação médica devem ser retomadas como critérios principais, ainda que não exclusivos, para definir a modalidade de parto e que a cesariana será adotada como medida excepcional, segundo protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, de forma a garantir a segurança da mãe e do bebê e, às gestantes e parturientes, o direito à informação e participação no processo de escolha.
“Dentro do Código Estadual da Mulher Paranaense é que estava inserida essa Lei da Cesárea Eletiva. Aquele artigo onde falava isso foi suprimido desse Código Estadual. Todo o mundo que atende a Linha de Cuidados Materno-Infantil já está sabendo agora, já foi comunicado, que não se faz mais essa modalidade que era feita antes”, enfatiza o obstetra Luiz Angelo Fornazari, que atende na Maternidade da Santa Casa de Irati.
Segundo Fornazari, enquanto a lei estava vigente, havia, às vezes, poucas informações e orientações às pacientes no pré-natal. “As pacientes sabiam que existia essa Lei, mas no pré-natal elas não eram orientadas de como deveriam proceder, porque existia todo um caminho. Ela deveria expressar, por escrito – então, tinham formulários – que ela tinha esse desejo. Só que, para isso, ela tinha que ter também uma indicação técnica. Às vezes, é contraindicado fazer uma cesariana, pois a paciente pode ter um histórico antigo de trombose ou alguma outra coisa que contraindicava. Essa paciente, mesmo fazendo esse formulário, tinha que ir até a Maternidade, fazer seu cadastro e nós faríamos a datação da idade apropriada para o parto, de 40 semanas em diante, que é quando o feto está maduro, para não gerar o transtorno de nascer uma criança, [precisar] fazer um distress respiratório, precisar de UTI. Estaríamos iatrogenizando uma coisa natural, fisiológica, que é a gestação. Estaríamos complicando uma coisa que não era para ser complicada”, explica.
A iatrogenia no parto ocorre quando há prematuridade provocada por intervenções médicas, por exemplo, com a retirada do bebê do útero sem indicação, cesarianas agendadas ou por avaliação incorreta da idade gestacional. Iatrogenia significa qualquer alteração patológica provocada no paciente pela má prática médica.
De acordo com o obstetra, havia muito desencontro de informações e muitas gestantes que sequer haviam preenchido o formulário e chegavam direto na Maternidade expressando o desejo de terem o parto cesáreo. “Na concepção delas, elas achavam que estavam cobertas pela lei, mas havia todo esse processo para fazer, anteriormente. Então, gerava transtorno. Além do que, na própria Maternidade, tem dias que são muito corridos, com as emergências obstétricas, partos, curetagens, hemorragias, além de consultas e avaliação. Às vezes, não se tinha, naquele momento, disponibilidade para se fazer uma coisa eletiva, que não era emergência e o pessoal não aceitava”, diz.
O obstetra critica o fato de que a elaboração dessa lei não considerou reunir as Sociedades de Obstetrícia e Ginecologia para ouvir a parte técnica; como também não ouviu a Sociedade de Pediatria. “Fizeram com alguns técnicos, escolhidos na época, não sei por quem, que falaram que poderia ser feito assim. Mas não foi uma coisa bem combinada, porque existem protocolos, da própria Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), que devem ser cumpridos, observados, para que se possa fazer um parto operatório. Esse foi o maior transtorno: uma lei que veio, não se explicou, não se orientou, não se disse nada e jogaram no colo do prestador de serviços, que arcou com toda essa consequência do que dava certo ou que não dava certo”, protesta Fornazari.
Medo do parto normal
Em Irati, segundo ele, aumentou bastante o número de gestantes que solicitaram a realização de partos por cesariana no período em que a lei esteve em vigor. O especialista atribui esse crescimento a uma tendência potencializada pelas redes sociais. “Existe uma tendência muito grande fazendo com que as gestantes tenham medo do parto normal, por falta de um preparo da mulher para o parto normal. Isso é porque os serviços de pré-natal, onde a paciente deve ser orientada, hoje totalmente descentralizados, feitos nos postos de saúde, não são feitos por especialistas, mas por médicos generalistas e eles têm uma demanda muito grande no posto, porque ele não atendem somente gestantes; eles atendem tudo. Falta esse tempo para que se prepare a mulher para que ela veja que o parto normal é uma coisa fisiológica. Como a humanidade chegou até aqui?”, questiona.
Fornazari insiste que é no acompanhamento pré-natal que a gestante precisa receber informações a respeito de tudo o que envolve a gestação, o parto e o puerpério, pois são nessas consultas, ao longo dos nove meses, que ela deve tirar todas as dúvidas. Porém, o obstetra aponta problemas no pré-natal descentralizado, ou seja, aquele que é oferecido na atenção básica, dentro dos postos de saúde, porque sobrecarrega o profissional que não é especialista e consulta, num mesmo expediente, as mulheres grávidas, mas também idosos, crianças, pacientes acamados, e não há tempo suficiente para prestar a ela as orientações de forma adequada. O médico frisa que foi uma recomendação do Ministério da Saúde, para que as gestantes fossem atendidas mais próximo de suas casas.
“Entre você ser atendida por um especialista e não ser atendida por um especialista, o que você prefere? Quando tínhamos aqui em Irati o pré-natal centralizado – que eu sempre fiz força para que ficasse centralizado, mas fui, depois, voto vencido – eram todos especialistas que atendiam e tinha toda uma equipe que era voltada somente para o atendimento da gestante, onde eram feitas palestras, orientações, eram tiradas dúvidas, e existia um transporte gratuito para essa gestante. A Prefeitura agilizava com que a gestante tivesse o transporte gratuito até o pré-natal. Era centralizado, mas a paciente era muito bem atendida, onde tinha as informações de pronto. Se não era dia de consulta, mas ela não estava bem e era o horário que o pré-natal estava aberto, a gestante ia lá. Hoje, a gestante que tem um problema corre na Maternidade, o que atrapalha muito o andamento do trabalho na Maternidade. Quando você olha o sofá, ele está cheio de pacientes sentadas lá, porque elas têm segurança em ir lá, porque sabem que tem um especialista”, compara.
Ainda que a cesariana seja praticada desde a Antiguidade, desde 700 antes de Cristo, faz pouco tempo que ela é praticada com segurança. Na Roma Antiga, a incisão na barriga da mãe só ocorria se ela já estivesse morta ou se nenhum dos dois resistiria às complicações de um parto normal. Registros diversos apontam que a mãe de Júlio César, Aurélia, teria ainda vivido após dar à luz o filho por esse método. A literatura médica considera que a primeira cesariana em parturiente viva de que se tem notícia ocorreu em 1500, em Sigershaufen, na Suíça, quando um homem que não era médico nem cirurgião-barbeiro, mas habituado a castrar porcas, precisou recorrer à técnica para fazer o parto da própria mulher, que ainda teve outras cinco gestações com partos normais, uma delas de gêmeos. A criança que nasceu viveu 77 anos. A cesárea na prática obstétrica só foi introduzida a partir do século XVIII, com alta mortalidade materna e fetal, e só ocorria em casos muito especiais. No Brasil, a primeira é creditada ao dr. José Correia Picanço, realizada em Pernambuco, em 1822.
“O parto normal é o mais fisiológico que existe para a mulher. Só que se ela não tiver um preparo e um apoio psicológico, o maior medo que ela tem é a dor. A dor não é assim: dói mais quando a pessoa não está preparada para isso. Quando existe um preparo dessas pacientes, elas sempre vão muito bem no parto normal”, ressalta Fornazari.
O que prevalece?
Para determinar se o parto será normal ou cesariana, o que prevalece, afinal: a vontade da gestante ou a indicação médica? O obstetra da Santa Casa de Irati aponta que o Ministério da Saúde define que, dentre os nascimentos custeados pelo Serviço Único de Saúde (SUS), no máximo 30% devem ser realizados mediante cesariana; os demais 70% devem ser partos normais. “Senão, ele [o SUS] derruba o preço do procedimento para o hospital, que vai receber cada vez menos”, explica.
O hospital recebe do SUS algo em torno de R$ 400 por um parto normal e pouco menos de R$ 500 por uma cesariana, segundo o médico. Uma variação de R$ 70 a R$ 80 entre ambos. No entanto, é necessário colocar na balança que os custos de uma cesariana, por ser um procedimento cirúrgico, envolvem mais gastos. A Tabela SUS, conforme o médico, não possui uma atualização substancial há pelo menos uma década.
Com isso, o Ministério da Saúde busca reduzir a taxa de cesarianas consideradas desnecessárias. Há 10 anos, o Ministério e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) criaram normas para reduzir a taxa de cesarianas na rede privada, que chegava a 84% dos procedimentos.
“O que faz com que haja boa indicação é a palavra do médico, a orientação do médico, o exame físico que o médico faz. Existem casos em que a cesariana é imprescindível. Um nenê, por exemplo, que gerou sentado, não tem como fazer um parto pélvico, porque é um risco para a mãe e, principalmente, para o bebê. Essa já é uma indicação formal, como também é para gêmeos, diabetes gestacional com feto muito grande, que vai dar desproporção. Existe uma série de indicações e é o médico quem vai definir”, argumenta o obstetra.
De acordo com Fornazari, sempre que uma gestante manifesta sua vontade de ser submetida a uma cesariana, é necessário avaliar essas condições, mas o mais frequente é o médico recomendá-la fazer o parto normal. O médico explica que, muitas vezes, o obstetra de plantão na Maternidade da Santa Casa não conhece a paciente que chega até lá para fazer o parto, pois ela não fez o pré-natal com ele, o que dificulta ainda mais para o profissional definir qual seria o procedimento mais adequado.
“Fica uma coisa ainda que não foi resolvida. Essa lei, lançaram, e gerou todas essas indefinições, dúvidas e temos que achar um meio-termo para contentar as gestantes, fazer com que o serviço ande bem, que não coloquemos em risco nem a mãe, nem o nenê. É um caminho que ainda vamos ter que trilhar”, diz.
Em Brasília
Na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 768/2021, de autoria do ex-deputado federal Neucimar Fraga (PP-ES) propõe garantir à mulher direito de optar pela cesariana ou de ser anestesiada no parto normal. A proposta está parada, desde 2023, aguardando parecer do relator da Comissão de Educação. O PL foi apensado ao PL 3635/2019, de autoria dos deputados Carla Zambelli (PSL-SP), Alê Silva (PSL-MG) e Filipe Barros (PSL-PR).
A proposta dos deputados do PSL foi apensada ao PL 4126/2015, de autoria do ex-deputado federal fluminense Felipe Bornier (PSD-RJ), que normatiza o direito ao parto humanizado na rede pública de saúde. Esta, por sua vez, foi apensada ao Projeto de Lei 6567/2013, originada do Projeto de Lei do Senado 8/2013, de autoria do ex-senador Gim Argello (PTB-DF).