Advogado e professor universitário, Jair Kulitch, explica como projeto beneficia empresários que pagam impostos em dia/Karin Franco

Resumo
-Projeto aprovado define punições para empresas que deixam de pagar impostos de forma recorrente e proposital, diferenciando quem enfrenta dificuldades momentâneas dos sonegadores habituais.
-Companhias enquadradas como devedoras contumazes poderão ser proibidas de participar de licitações, acessar crédito público e pedir recuperação judicial sem quitar dívidas tributárias.
-Segundo o advogado e professor Dr. Jair Kulitch, a medida busca combater esquemas estruturados de sonegação e lavagem de dinheiro, além de proteger empresários que cumprem suas obrigações e sofrem com concorrência desleal.
A Câmara de Deputados aprovou nesta semana o Projeto de Lei Complementar 125/2022, que institui o Código de Defesa do Contribuinte. Um dos objetivos do projeto é combater o chamado devedor contumaz, empresas que usam o não pagamento de tributos como estratégia comercial.
O projeto, criado em 2022, é de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e foi aprovado pelo Senado em setembro. O texto foi encaminhado para Câmara de Deputados e teve a relatoria designada no final de novembro, que ficou com o deputado Antonio Carlos Rodrigues (PL-SP).
Na noite de terça-feira, o projeto foi aprovado por 436 votos a favor e dois contrários, sendo os votos contrários dos deputados Flávio Nogueira (PT-PI) e Marx Beltrão (PP-AL). O texto segue para sanção presidencial.
Segundo o advogado e professor universitário da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), Jair Kulitch, doutor em Direito Empresarial, o projeto auxilia a trazer uma definição sobre quem é o devedor contumaz. O advogado explica que há diferença entre o devedor contumaz e o devedor que adquiriu a dívida por causa de dificuldades financeiras, chamado de inadimplente pontual.
“A atividade empresarial sofre interferência de vários fatores e, em alguns momentos, é possível que aquele empresário não consiga honrar com os seus compromissos, dentre eles, os compromissos tributários. Isso faz com que ele seja um inadimplente pontual, uma questão específica. Exemplo, a taxação dos Estados Unidos limitou algumas atividades, quem teve problema de fluxo de caixa e tudo mais. Esse é aquele sujeito que não consegue honrar com os seus compromissos sem razão numa situação bastante transitória, bastante pontual”, explica.
O devedor contumaz é o empresário que deve impostos de forma recorrente, paga alguns tributos esporadicamente e fica com o lucro para si.
“É aquele que não paga o tributo, mesmo tendo condição econômica para tanto. Por exemplo, ele tem um faturamento bom, ao invés dele honrar as obrigações tributárias, ele investe aquele dinheiro numa ampliação da atividade dele ou melhorando o fluxo de caixa dele, talvez adquirindo produtos com preço menor para poder ter uma maior lucratividade e ele sempre vai ter uma dívida tributária elevada.”, explica.
“Essa dívida vai ser reiterada, de certa forma, que em algum momento ele paga a dívida mais atrasada, evita uma execução fiscal mais severa. Se beneficia, o que é legal, de alguns Refis que, às vezes, surgem. Então, é este sujeito que ele não faz de forma esporádica, mas ele faz de forma reiterada. Mas a finalidade da estrutura empresarial não é essa. Não é sonegação tributária, não é deixar de pagar tributo. É uma atividade econômica, mas por algum motivo, ele deixa de recolher o tributo”, complementa.
Há ainda um terceiro tipo, que é o devedor estrutural, conhecido também como inadimplente estrutural. Nesses casos, a empresa é criada desde o início com o objetivo de sonegar imposto. “É aquela atividade empresarial que é estruturada com o propósito específico de exercer uma atividade empresarial e não recolher tributo. Não é que ela vai deixar de recolher o tributo para aproveitar aquele dinheiro para a própria atividade, o que já não é correto. Ela utiliza da atividade empresarial para ter um rendimento limpo, líquido e simplesmente deixar de recolher tributo”, comenta.
O advogado destaca que o projeto, aprovado no Congresso Nacional, têm o objetivo de combater este último caso de sonegação. “Esta inadimplência estrutural é a mais severa e a mais grave, porque vem uma estrutura muito bem montada, muito bem arquitetada com a finalidade de exercer a atividade, ter lucratividade e não recolher tributo”, disse.
Estas empresas costumam mudar de Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) e podem usar “laranjas”, um termo para pessoas que são usadas para encobrir o real dono de uma empresa.
“Uma das características deste devedor inadimplente é esta. Ele utiliza aquele termo “laranja”. Ou seja, ele mantém a mesma atividade, mas ele fica mudando de quadro societário. Muitas vezes, ele encerra uma atividade e começa num pequeno espaço de tempo. Essas empresas acabam fazendo de forma fraudulenta manobras contábeis, deixando de registrar movimentos, produzindo e comercializando sem notas fiscais, emitindo aquilo que se chama de meia nota. São várias formas que se tem. O objetivo destas atividades empresariais é aquilo que se tenta combater, que é a evasão fiscal, ou seja, produzir receita sem recolher tributo e dispersar esse dinheiro para fora do Brasil, em bens e direitos”, explica.
O grande desafio no combate a este tipo de sonegação de imposto é que, por meio da legislação atual, é difícil diferenciar estes tipos de devedores. “A primeira dificuldade que se tem é identificar o que é um devedor contumaz, o que é um devedor pontual e o que é um devedor estrutural. É difícil. Os projetos de lei tentam estabelecer alguns critérios. É difícil você estabelecer um critério de valor. Por exemplo, uma empresa está devendo R$ 1 milhão. Ela é uma devedora estrutural, ela é um inadimplente pontual ou ela é um contumaz? A lei tenta trazer alguns critérios”, disse.
No projeto aprovado pelos deputados, há o estabelecimento de valores e de faturamento das empresas. “Num primeiro momento, ela considera aquela empresa que tem um faturamento elevado e acaba não recolhendo tributo. Isso é um bom indício. A empresa tem atividade, movimenta bastante, mas não recolhe tributo. Existem outras tentativas de se identificar. Por exemplo, aquela atividade empresarial que não recolhe qualquer tributo por 12 meses. Já se pressupõe que esta empresa vai ser um inadimplente contumaz ou ela está organizada estruturalmente para sonegar tributo. Existem outras perspectivas de valores. No projeto de lei, há uma menção no valor equivalente a R$ 15 milhões, mas é um valor que não tem como você mensurar”, explica.
Para o advogado, o melhor critério é a movimentação econômica e empresarial. “Isso é possível o fisco controlar através da estruturação contábil digital. Ele consegue identificar que a empresa emite notas, fatura, tem patrimônio, só não paga o tributo. Um outro critério também é a empresa que está devendo ou que deve por um prazo de cinco anos. Ela deve, paga um pouquinho, deve, paga um pouquinho, deve, paga um pouquinho. Entenda-se que este seria o tal do devedor contumaz. E aquelas empresas que não aderem a nenhum tipo de programa de refinanciamento. Entenda-se que esta empresa está preparada para não pagar tributo, até porque ela teve um refinanciamento e não cumpriu”, disse.
As empresas que se caracterizam como devedor contumaz podem sofrer consequências, como não conseguir participar de processos licitatórios. “Algumas outras que surgem é que você não pode fazer nenhum tipo de contratação com o serviço público. Você também perde acesso a algumas linhas de crédito, financiadas pelo BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], por exemplo. Se você tem alguma dívida tributária, você não consegue acessar um crédito mais barato, com juros menor”, explica o advogado.
Outra consequência que prevista no projeto de lei é no caso de empresas que entram em recuperação judicial. “A recuperação de empresas pressupõe que a empresa está apta a se recuperar. Há uma ideia nesse projeto de lei, de que a empresa, quando pretender recuperação judicial, vai se verificar o histórico dela, de recolhimento de tributo. Para verificar se ela é uma devedora contumaz, inadimplente ou estrutural. E a partir disso, definir que a recuperação só será deferida após a quitação ou a garantia desses débitos tributários já deixados”, conta.
Uma das preocupações com empresas que se enquadram como devedor contumaz é o uso de “laranjas”. Segundo o advogado, há casos de empresas que são criadas para a lavagem de dinheiro.
“Algumas vezes a pessoa age sem o conhecimento. Nós vemos notícias na mídia de pessoas com uma instrução muito baixa, que não tinham essa informação e acabam sendo envolvidas em operações grandes. Porque isso tem uma característica interessante, que essa inadimplência ou esse devedor estrutural não está só visando ao não pagamento de tributo. Por isso que tem essas ações conjuntas entre Receita Federal e Polícia Federal, porque atrás dessas atividades empresariais, existe uma organização criminosa. Muitas vezes para lavar dinheiro, para encaminhar dinheiro para fora do país. Por isso que, muitas vezes, essas operações são articuladas com vários órgãos. Receita Federal, que cuida da parte administrativa, Polícia Federal, Ministério Público, Procuradoria Geral da Fazenda Nacional porque nós tratamos de verdadeiras organizações criminosas”, disse.
A dificuldade do combate a estas empresas é que o dinheiro pode ser levado para fora do país e a investigação fica mais difícil, pois exige a cooperação de informações entre países. Outra dificuldade é o rastreamento dos recursos financeiros. “Esses grupos criminosos conseguem dissimular esse dinheiro em várias contas. Ele passa para um, passa para outro, fica um pouco difícil você rastrear esse dinheiro e localizar, mas é possível”, conta.
O advogado destaca que é difícil proibir que pessoas que não tem muita instrução escolar não participem de quadros societários. “Não tem como isso ser tratado, porque eu não posso impedir uma pessoa de abrir uma atividade empresarial. Não é a partir da escolaridade dela, que ela está limitada a abrir uma empresa. O que se tenta fazer é através de cruzamento de informações, identificar quem é esta pessoa. Por exemplo, a pessoa, bastante simples, abre uma atividade empresarial com capital social de R$ 1 milhão. A Receita Federal consegue identificar: ‘Peraí, essa pessoa não tem renda, não tem patrimônio, não tem condição de ter uma empresa com o valor de capital social tão elevado’. Mas restringir, é muito difícil”, explica.
A criação de empresas com “laranjas” pode acontecer com documentação falsa. O advogado alerta que as pessoas precisam ter cuidado com as informações fornecidas a serviços e que, em caso de roubo de documentos, é preciso fazer um Boletim de Ocorrência.
“De repente, ele perdeu o documento, foi assaltado e tomaram o documento dele. É muito importante fazer um Boletim de Ocorrência e registrar esse fato. Porque, muitas vezes, esses documentos achados, furtados ou roubados são passados para essas organizações criminosas para fazer isso. Aquela pessoa que teve a infelicidade de perder o documento ou, com infelicidade maior ainda, de ser furtado e roubado, é muito importante que faça um Boletim de Ocorrência. Porque se amanhã surgir uma empresa com o nome dele, ele consegue comprovar que não foi ele que deu início àquela atividade ou àquela empresa”, alerta.
A aprovação deste projeto é positivo para o empresário, segundo o advogado. “Isso é importante para a atividade empresarial porque aquele empresário – e isso é a grande maioria do empresário brasileiro – é correto, é honesto. Ele recolhe todos os tributos, mas eventualmente vem algum sujeito mais ‘esperto’, acaba criando uma empresa e ele não recolhe tributo. Ele caracteriza uma concorrência desleal muito grande porque você tem um custo elevado do teu produto, a tua margem do lucro é pequena, ao passo que o teu concorrente não recolhe tributo, está estruturado para não recolher tributo e acaba conseguindo conquistar a tua clientela, levando teus clientes, tendo lucro, acaba quebrando a empresa. É importante isso, pensando não somente na perspectiva de recolher tributo, mas eliminar essa concorrência desleal que surge através dessas inadimplências”, destaca.
Outro aspecto positivo é que o combate à sonegação de imposto pode diminuir o valor dos tributos. “O Estado precisa de receita tributária, ele precisa arrecadar. Quando você tem devedores inadimplentes, faz com que o Estado busque essa receita daqueles que já pagam. Está mais fácil o Estado aumentar a alíquota do que buscar os inadimplentes, ao passo que quando ele busca os inadimplentes, aumenta a receita tributária para o Estado, sem aumentar a tributação. Identificar o devedor inadimplente estrutural, aquele que é contumaz, é importante para você eliminar a concorrência desleal e também evitar com que a carga tributária cresça, se eleve para aqueles que já pagam tributo”, conclui o advogado.