A proposta do Ministério dos Transportes pretende reduzir em até 80% o custo da CNH e flexibilizar o processo de formação de condutores, permitindo cursos on-line e atuação de instrutores autônomos. Já o especialista em Direito de Trânsito Walber Pydd avalia que a ideia moderniza o sistema, mas alerta para o risco de um processo com brechas na fiscalização e na qualidade da formação/ Reportagem de Diego Gauron

Resumo
•Proposta do Ministério dos Transportes prevê reduzir em até 80% o custo da CNH, com mais liberdade para o candidato escolher como e onde estudar.
•Aulas em autoescolas deixam de ser obrigatórias, e instrutores autônomos poderão oferecer aulas práticas credenciadas pelos Detrans.
•Especialista em Direito de Trânsito alerta para riscos de “processo solto demais” e defende critérios claros de avaliação e fiscalização.
O Ministério dos Transportes colocou em consulta pública uma proposta que pode mudar de forma profunda o processo de obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). A ideia é modernizar o sistema, permitir mais autonomia ao candidato e reduzir o custo da carteira, que hoje pode chegar a R$ 4,2 mil e levar quase um ano para ser concluída.
A minuta do projeto está disponível na plataforma Participa + Brasil até o dia 2 de novembro, e qualquer cidadão pode enviar sugestões. Depois, o texto seguirá para análise do Conselho Nacional de Trânsito (Contran).
Segundo o governo, o objetivo é “ampliar o acesso, reduzir a informalidade e modernizar o processo de formação de condutores, sem abrir mão da segurança viária”. Com a modernização do processo, o governo afirma que busca diminuir barreiras econômicas que hoje impedem milhões de brasileiros de obter a habilitação, especialmente nas categorias A (motocicletas) e B (veículos de passeio).
Milhões dirigem sem habilitação
De janeiro a setembro deste ano, foram registradas quase 800 mil infrações por dirigir sem CNH, segundo a Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran). Em todo o país, 20 milhões de brasileiros conduzem veículos sem habilitação.

O advogado Walber Pydd, especialista em Direito de Trânsito, avalia que o governo tenta reagir a esse quadro com medidas de desburocratização, mas alerta para o equilíbrio entre acesso e segurança. “Eles querem, em tese, desburocratizar a forma como você vai tirar a CNH. Tudo que visa facilitar é bem-vindo, mas é preciso deixar claro como será feita essa avaliação, quais são os critérios e como vai funcionar a fiscalização”, afirma.
O que muda
Uma das principais mudanças é o fim da obrigatoriedade de fazer aulas exclusivamente em autoescolas. O candidato poderá optar entre estudar gratuitamente em curso on-line oferecido pelo Ministério dos Transportes, frequentar uma autoescola tradicional (presencial ou a distância), ou estudar em uma escola pública de trânsito, como os Detrans.
“Hoje o candidato é obrigado a cumprir 45 horas de aulas teóricas e 20 práticas em autoescolas. Com a nova proposta, ele pode escolher o formato que quiser, inclusive estudar on-line”, explica Walber.
Segundo o Ministério, essa flexibilização não elimina as provas obrigatórias, que continuam sendo o principal filtro para garantir a segurança viária.
O exame teórico seguirá exigindo 70% de acertos, e o teste prático manterá o sistema de pontuação — com início em 100 pontos e aprovação para quem terminar com pelo menos 90. “O conteúdo e os exames continuam sendo obrigatórios. O que muda é que o cidadão terá mais liberdade para escolher como se preparar”, afirma o governo.
Instrutor autônomo e novas formas de aprendizado
Outra inovação é a criação do instrutor autônomo, profissional credenciado pelo Detran, que poderá oferecer aulas práticas sem vínculo com autoescolas. “Parece uma boa ideia, mas ainda há muitas dúvidas. A pessoa vai ser autônoma, mas como vai se cadastrar? Vai ter que abrir MEI, recolher INSS? Isso precisa ser detalhado”, pondera Walber.
O Ministério dos Transportes esclarece que os instrutores autônomos deverão ser credenciados pelos Detrans e seguir critérios padronizados em todo o país, com identificação digital na Carteira Digital de Trânsito (CDT).
A formação de instrutores também deve ser ampliada: o governo estuda oferecer curso gratuito e on-line, ampliando o acesso à profissão. “Nenhum instrutor poderá atuar sem autorização formal. O credenciamento garante controle, segurança e transparência no processo”, afirma a nota do Ministério.
Menos burocracia
Segundo o governo federal, todo o processo de habilitação deverá ser digitalizado. O candidato poderá abrir o processo diretamente pelo site da Senatran, com autenticação via conta gov.br, e acompanhar o andamento pelo sistema Renach (Registro Nacional de Carteira de Habilitação).
A coleta biométrica — com foto, assinatura e digitais — continuará sendo feita presencialmente no Detran e será usada para validar todas as etapas, inclusive os exames. “O novo modelo simplifica etapas e reduz deslocamentos desnecessários. O cidadão só precisará ir presencialmente para as etapas médicas, psicológicas e para a prova prática”, explica o Ministério.
Custo pode cair até 80%
Atualmente, as autoescolas representam cerca de 80% do custo total do processo, afirma o governo federal. Com o curso teórico gratuito e o fim da carga horária mínima nas aulas práticas, é estimado que o valor final para tirar a CNH poderá cair em até 80%.
Walber reconhece que o impacto econômico é significativo, mas alerta que o barateamento não pode comprometer a qualidade da formação.
“Se com a forma de aprendizado atual já está difícil baixar esses índices, como é que vai ficar com esse novo processo que parece ser muito mais solto? Talvez seria o momento de aproveitar, não só desburocratizar, mas estabelecer metas, trabalhar para que a avaliação seja mais rigorosa ou que a educação, a formação seja mais rigorosa, para justamente tentar diminuir essa questão dos índices”, avalia.
Brasil busca seguir modelo internacional
A proposta brasileira se inspira em países que priorizam avaliações teóricas e práticas em vez da quantidade de aulas obrigatórias, como Estados Unidos, Canadá e Reino Unido. Nessas nações, o foco está na qualificação do candidato e não na quantidade de horas de curso.
O governo defende que, ao adotar essa tendência, o Brasil estará “modernizando o sistema sem abrir mão da segurança”.
“A expectativa é ampliar o número de condutores habilitados e reduzir a condução sem formação adequada. Assim, teremos um trânsito mais regularizado e seguro”, afirma o Ministério dos Transportes.
Risco de mercado paralelo e impacto nas autoescolas
Walber, no entanto, acredita que o modelo ainda exige ajustes para evitar distorções. “Pode aparecer um mercado paralelo de instrutores, mas eu acho que eles vão acabar regulamentando, a pessoa vai ter que comprovar a formação, vai ter que comprovar que tem experiência, que tem prática, e eles vão tentar fazer esses filtros”, comenta.
Ele também destaca o impacto sobre as autoescolas, que temem perda de alunos e receita. “Manter uma empresa no Brasil já é difícil. Qualquer medida que diminua o movimento pode gerar desemprego. É preciso ter cautela, mas é muito provável que vai ter desemprego em massa”, diz o advogado.
O Ministério, por outro lado, reforça que as autoescolas continuarão tendo papel importante, oferecendo cursos presenciais com acompanhamento personalizado. “O objetivo é democratizar o acesso, sem retirar a importância das autoescolas. Elas continuarão sendo uma das opções para quem preferir o modelo tradicional”, informa a nota.
E como ficam as categorias C, D e E?
A proposta também prevê a facilitação dos processos de obtenção da CNH para as categorias C (veículos de carga, como caminhões), D (transporte de passageiros, como ônibus) e E (carretas e veículos articulados), permitindo que os serviços sejam realizados por autoescolas ou por outras entidades, com o objetivo de tornar o processo mais ágil e menos burocrático.
Consulta pública e próximos passos
A proposta do programa “CNH para Todos” ficará em consulta pública até o dia 2 de novembro, no portal Participa + Brasil. Depois, seguirá para análise do Contran, que poderá transformá-la em resolução oficial.
Enquanto isso, Walber recomenda prudência a quem já está tirando a carteira. “Quem já está no processo deve seguir, porque essas mudanças podem demorar. Há risco de judicialização e questionamentos. Então, se você precisa da CNH agora, o melhor é continuar no modelo atual”, orienta.
Trânsito brasileiro ainda é desafio
Mesmo com avanços tecnológicos e campanhas educativas, o Brasil segue entre os países com mais mortes no trânsito. “Foram cerca de 35 mil mortes por ano. Se com as autoescolas já não conseguimos reduzir, o novo modelo precisa vir acompanhado de fiscalização e educação”, conclui o especialista.